Práxis carismática e espiritualidade contemplativa

06-10-2010 14:58

 

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Práxis carismática e espiritualidade contemplativa

 
Em setembro de 2009, Tácito Coutinho - o Tatá - esteve participando como conferencista da Semana Teológica de Espiritualidade, promovida pela Comunidade Kénosis. Colocamos abaixo, na íntegra, a tese que discute a seguinte proposição:
A partir do amadurecimento da vivência do batismo no Espírito Santo como atingir um estado de perfeita união com Deus, numa via de espiritualidade contemplativa sem prescindir da práxis carismática?
Tácito Coutinho (Tatá)

Algumas considerações iniciais.

A tese proposta exige algumas considerações: qual a relação do batismo no Espírito Santo e contemplação? O que se entende por “práxis carismática”? Como se relaciona a “vida no Espírito” e “via contemplativa”? O que se entende por “espiritualidade contemplativa”?

E o que seria a “práxis carismática”? Imagino que estamos pensando na “vida segundo o Espírito” (Rm 8,5-17). De fato são Paulo contrapõe a carne (entendida como vida temporal – secularista) ao Espírito (entendido como principio de vida sobrenatural).

O batismo no Espírito Santo, como “experiência concreta da graça de Pentecostes na vida do fiel e da comunidade” (cardeal Paul Cordes) introduz à vida no Espírito produzindo sinais objetivos desta mesma experiência: mudança de mentalidade, vida interior, ardor missionário e vida fraterna – de maneira resumida. Portanto podemos falar que a vida no Espírito consiste – de modo abreviado – na vivência destes quatro aspectos: conversão, intimidade com Deus, missão e comunidade.


Esta experiência continuada do batismo no Espírito – e que consiste na vida no Espírito –, é inaugurada em nós pela experiência do “amor de Deus que foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (cf Rm5,5). Portanto a vida no Espírito, conseqüente do batismo no Espírito, consiste na vida “em amor”, ou seja, na prática da caridade, que é o “caminho incomparavelmente superior” (cf. 1Cor 12,31).

Interessante notar que o Apóstolo estabelece este princípio de vida “incomparavelmente superior” logo após refletir sobre a “práxis carismática” dos coríntios, submetendo os carismas à caridade, ou seja, à vida interior, e estabelece uma série de “qualidades” da caridade que sinalizam a “via contemplativa”, necessária para a autenticação das manifestações carismáticas.

A caridade é a exigência da prática cristã. E a caridade implica em atos concretos, a exemplo de Jesus Cristo que se entregou por amor, em favor dos outros, sendo esse o critério se vivemos ou não conforme o Espírito de Cristo. Três textos são suficientes para estabelecer esse argumento:

  • O Juízo final – quando seremos indagados a respeito de nossas obras – em Mateus 25,31-46

  • O bom samaritano – que nos revela qual a verdadeira religião – em Lucas 10,25-37

  • O preceito fundamental – amar como Jesus amou – em João 15,12-13

A tese proposta sugere uma contraposição: vida no Espírito e vida contemplativa. A meu ver, a vida contemplativa tal como se entende, é uma vocação específica na Igreja e por ser um chamado é também “vida no Espírito” e possui uma dimensão carismática. Acredito que estamos buscando, nesta tese, estabelecer os princípios de uma vida ativa a partir da vida interior.

A polarização proposta, vida contemplativa e práxis carismática, pode ser falaciosa, pois compreendo que a vida interior (aqui entendida como via contemplativa) é o núcleo da práxis carismática, não existindo nenhuma oposição entre elas, portanto “não se pode prescindir a via contemplativa na práxis carismática”.

Vida contemplativa e práxis carismática

Nesta abordagem chamarei a “via contemplativa” de “vida interior” e a “práxis carismática” de “via ativa”, adotando a linguagem clássica da teologia da espiritualidade e que sempre foi um dos assuntos mais discutidos. Já o Evangelho de Lucas nos trás esta discussão no episódio de Marta e Maria (cf Lc 10,38-42) e santo Inácio de Loyola apresenta como ideal do cristão o “ser contemplativo na ação”.

Para assegurar a fecundidade da ação é necessário “garantir” a vida interior seguindo o que Jesus estabelece como o princípio do “agir”:

“Eu sou a videira e vós, os ramos. Aquele que permanece em mim, como eu nele, esse dá muito fruto; pois sem mim, nada podeis fazer”. – João 15,5

São João da Cruz afirmava que “os homens devorados pela atividade e que pensam em resolver o mundo com pregações e obras (hoje diria com ação social puramente), compreenderão que seriam mais úteis à Igreja, e muito mais agradariam ao Senhor, se consagrassem mais tempo à oração e aos exercícios de vida interior”. – S. João da Cruz, in Cântico Espiritual, estrofe 29

O Catecismo da Igreja Católica ensina: “Sendo Cristo enviado pelo Pai a fonte e a origem de todo apostolado da Igreja’, é evidente que a fecundidade do apostolado, tanto o dos ministros ordenados como o dos leigos, depende da sua união vital com Cristo. De acordo com as vocações, os apelos da época, os dons variados do Espírito Santo, o apostolado assume as formas mais diversas. Mas é sempre a caridade, haurida, sobretudo na Eucaristia, ‘que é como que a alma de todo apostolado’.” (CIC 864

A oração não pode subsistir sem que uma ação brote dela. A vida contemplativa sem ação fica estagnada e a ação sem a oração contemplativa, leva a um desgaste e um andar em círculos. A vida interior (via contemplativa) como que purifica nossa visão das atividades a serem realizadas e nossas idéias sobre o como deveríamos fazê-las. Ela nos capacita a unir as duas e trazer o espírito de nosso compromisso contemplativo na vida diária. Nosso centrar em Deus nos acompanha na vida diária, seja em outras formas de oração, seja em nossos relacionamentos, seja em nosso trabalho... Todas as nossas ações devem brotar desse núcleo. A vida interior é resultado de nossa natureza espiritual e expressa nosso verdadeiro ser. Expressamos uma liberdade interior que manifesta mais e mais a mente de Cristo em nossa vida particular, através do brotar e fluir do Espírito e das Bem Aventuranças. Assim, a nossa vida ativa nos leva mais e mais profundamente em direção à fonte que é a vida Trinitária dentro de nós, seus efeitos nos conduzem mais poderosamente para fora, em direção à união a que chamamos de Comunhão dos Santos: a capacidade de nos relacionarmos uns com os outros com o amor incondicional com o qual Cristo se relaciona conosco

João Paulo II recordou que a vida espiritual é a “alma de toda iniciativa apostólica”:

“A vida espiritual profunda, tão vinculada em sua tradição à observância e a contemplação, à interioridade e busca incansável de Deus, é sempre o ponto de partida da autêntica renovação e a alma de toda iniciativa apostólica”, assinalou o Papa. Do mesmo modo, João Paulo II sublinhou que "o progresso na vida sobrenatural, cimentado na oração assídua e a participação nos sacramentos, é uma premissa fundamental para uma ação apostólica frutuosa”. “Em particular a Eucaristia, que é presença real de Cristo mesmo na história humana. É também 'fonte e epifania' dessa comunhão fraterna que deve reinar em suas comunidades e ser uma mensagem vivente de concórdia em um mundo dominado frequentemente pela rivalidade e o conflito”. – João Paulo II participantes no Capítulo Geral dos Agostinhos Recoletos, 1998.

Papa Gregório Magno desta visão, na sua Regra pastoral. O bom pastor — diz ele — deve estar radicado na contemplação. De fato, só assim lhe será possível acolher de tal modo no seu íntimo as necessidades dos outros, que estas se tornem suas. Neste contexto, São Gregório alude a São Paulo que foi arrebatado para as alturas até aos maiores mistérios de Deus e precisamente desta forma, quando desce, é capaz de fazer-se tudo para todos (cf. 2Cor 12, 2-4; 1Cor 9, 22). Além disso, indica o exemplo de Moisés que repetidamente entra na tenda sagrada, permanecendo em diálogo com Deus para poder assim, a partir de Deus, estar à disposição do seu povo: “Dentro da tenda arrebatado até às alturas mediante a contemplação, fora da tenda deixa-se encalçar pelo peso dos que sofrem”. – São Gregório Magno

Sendo, portanto a vida interior uma experiência do amor de Deus e sendo a origem da vida ativa, poderíamos de forma inconclusa estabelecer alguns pontos a respeito da “práxis carismática” que brota da “via contemplativa”, para alcançarmos o “estado de perfeita união com Deus”. Considerando que em Jesus Cristo encontramos de modo perfeito o que se busca com essa reflexão, observamos duas atitudes que consistem, a meu ver, o resumo da tese proposta:

1ª atitude: Dar a vida por amor

O exercício verdadeiro da caridade tem como resultado a mudança de atitudes, de mentalidades e de relações. O objetivo último e singular da ação cristã é: viver e ajudar a outros viver, de maneira que seja o reflexo do modo com que Deus se relaciona conosco e com os bens materiais. João Paulo II chamada de maneira profética esse futuro de “Civilização do Amor”.

Nossa fé em Jesus e nossa esperança de salvação devem expressar-se concretamente no amor que busca soluções para os problemas humanos e a mudança das realidades que diminuem o ser humano. Importante frisar que para o cristão, as metas sociais estão subordinadas a um fim mais alto; a manifestação da presença salvadora de Deus na ordem social.

A perspectiva do amor leva à mudança, porque é a única que toca o coração do problema, a única que descobre que as necessidades mais fundamentais do homem não são as de mais comida, mais dinheiro e mais poder. Na realidade esta humanidade tem fome e sede de amor. É preciso aprender e implementar novas formas de nos relacionar, baseadas no amor.

Os valores do Reino, brotados da experiência de Pentecostes, podem aparecer com maior clareza num Grupo de Oração, que constitui um espaço de confiança e liberdade, de abertura e gratuidade. As relações interpessoais podem gerar aí uma profunda comunhão, graças a uma abertura comum ao Espírito Santo. Essa experiência social pode ter grande significado e provocar impacto sobre outros planos das relações humanas, sobretudo na caridade fraterna. Como a partir da experiência do amo de Deus, permanecer frio diante das necessidades do outro que comigo partilha da mesma experiência? Lemos nos Atos dos Apóstolos: “Todos os que abraçavam a fé viviam unidos e possuíam tudo em comum, vendiam suas propriedades e bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um”. (Atos 2, 44s). A Renovação Carismática Católica pode ser um agente de transformação da sociedade a partir de seu apelo à radicalidade evangélica e por sua insistência no serviço mútuo.

No texto citado anteriormente (o Bom Samaritano) vimos o risco da “alienação religiosa”, confrontada com o efetivo exercício da caridade. Este é o desafio, não permanecer somente na dimensão religiosa sem o efetivo engajamento em favor daquele que está “a beira do caminho”.

2ª atitude: Renunciar a si mesmo

Não é uma atitude masoquista ou conformista, mas colocar os desejos de Deus na prioridade de nosso viver. Somente quando experimentamos Seu Amor em nós encontramos o sentido para esse “renunciar”.

Essa “renuncia de si mesmo”, que é a raiz da humildade, supõe três conversões: (1) a conversão do “nosso amar”; (2) a conversão da nossa vontade; (3) a conversão do “nosso pensar”. Vejo nesta perspectiva a via interior, pois é na oração e contemplação que essas transformações acontecem

O Espírito Santo.

Esta obra de vida interior transbordante na vida ativa é resultado da ação do Espírito Santo em nós. Obra iniciada no batismo e que Ele levará a termo com nossa cooperação. Podemos distinguir quatro ações do Espírito Santo na formação de nossa vida interior:

1. Produz em nós o desejo de santidade, que consiste na caridade perfeita;

2. Purificação de nossa mentalidade, nos revelando o que é bom, agradável a Deus e perfeito (cf Rm 12,2);

3. Educa e conduz, como um pedagogo interior;

4. Ataca e remove os obstáculos que nos impedem de crescer, pelo constrangimento da consciência ou pela consolação de nossas almas.

A partir da consideração que o batismo no Espírito Santo é a introdução na vida do Espírito, é forçoso concluir (sem esgotar todo tema) que a “práxis carismática” é consequência da “via contemplativa”. Que somos chamados a ser Marta-Maria.

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo